A Física e a memorização
Há muitos anos, quando éramos ainda neófitos deslumbrados com o estudo da Física (alguns continuaram, felizmente), uma colega brilhante dizia que os cursos de Física e de Matemática (em sentido lato) eram os únicos em que se apelava ao raciocínio. Segundo ela, os outros baseavam-se apenas no bom senso ou na memorização - o "marranço".
Pela minha parte, sempre tentei relativizar este sentimento de privilégio que também carregava de, apesar da incompreensão geral do mundo de fora, ter a oportunidade de estudar a mãe de todas as ciências naturais, e de passar assim a fazer parte de uma espécie de irmandade a que também pertenceram Galileu, Newton, Einstein e Feynman.
É certo que não se nos pedia que memorizássemos longas listas de palavras estranhas, como em taxonomia ou em anatomia, nem processos invulgarmente complexos, como em fisiologia.
Mas pediu-se-nos também que memorizássemos. Resoluções de problemas típicos e respectivos truques. Equações - os tipos de funções, os coeficientes e os expoentes de cada termo, os gráficos das funções, os casos limite, e por aí fora. Mais tarde, os "papers" em que tínhamos lido pedaços de informação, os meandros intrincados de raciocínios por onde tínhamos passado antes de chegar a uma determinada conclusão.
Por exemplo, quanto aos gráficos, ao ler a entrada da Catarina intitulada "Para que serve um blog?", em que fala das referências visuais que nos acompanham, lembrei-me de um padrão que para nós é familiar e não dirá muito a quem não estudou Física: o gráfico das superfícies de igual potência radiada por uma carga acelerada, com a forma de lóbulos.
Isto tudo para dizer que, afinal, em Física também usamos e precisamos criticamente da memória. E que acabamos, mais ou menos voluntariamente, por exercitá-la.
Contaram-me uma vez que um determinado médico, já reformado, mantém em forma a sua capacidade de memorização com exercícios aparentemente masoquistas. Mas como muitos físicos que conheço têm o gosto - e, alguns, o dom - da palavra, é natural que aquilo que me surgiu num longínquo momento de descontracção como uma agradável surpresa seja, afinal, uma coisa muito compreensível. É que os meus colegas de Física sabiam muitos, muitíssimos... poemas de cor. Em várias línguas.
Digam-me lá se este não é, pelo menos, um belíssimo exercício? E não só um exercício, claro está.
O raciocínio segue mais tarde.
1 :
Uma reflexão bem oportuna tendo em conta uns certos apelos a um retorno à memorização das matérias. A questão essencial é a que descreves, quem estuda bem não precisa de fazer um exercício exclusivo de memorização, ela acontece naturalmente, tal como uma criança que aprende a letra toda de uma canção que gosta sem fazer um execćio de memorização forçado, vulgo "marranço"; Tal como os teus colegas que sabem poemas de cor.
enviado por Rui Curado Silva em outubro 11, 2004 1:02 da tarde
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