Ficção científica portuguesa da década de sessenta
- «Já não há Fantasmas, meus Senhores / Morreram os Fantasmas / Ah quem soubesse chorá-los!» Sabes onde vem isto?
- Não há dúvida, no Livro de Syma, talvez num dos últimos tomos, talvez no primeiro, não me compete sabê-lo...
- Nunca te compete nada, «rapaz»! Não, não vem no livro de Syma; tal «trocadilho» deve ter passado à posteridade pela tradição oral...
Riri mostra-se extremamente divertido:
- ... Gostas de flanar ao capricho antigeométrico da natureza. É isso.
- Enganas-te, Riri. Conto-te estas coisas para que possas tirar sábias conclusões, ultrapasses o teu metálico espírito. Aos poucos - quem sabe? - tornar-te-ás um robot humanóide tão cínico como Albert ou Henry... - Maga levou um dedo aos lábios: - ... Não, o que queremos é que tenhas senso de humor, espírito crítico, como qualquer pré-histórico bobo, sòmente isso. Nem de outro modo se explicaria a tua existência, a não ser que uma existência se justifique... Nunca se justifica, é evidente...
Riri curvou-se. Os traços brilhantes do seu esferóide rosto fizeram-se mais brilhantes, como que reveladores de contentamento «íntimo»:
- Sou o teu Escravo, Maga.
Maga dirigiu-se a uma porta doirada (estavam em moda as portas doiradas), parando antes de a abrir para dizer:
- É melhor, de facto, continuares a desempenhar o teu simplérrimo papel de eunuco-escravo, ou melhor, de caixa metalo-orgânica onde se guardam «virtudes», isto é, propriedades neutro-negativas. Quem nos diz a nós que um dia não necessitaremos dessa bagagem para sobreviver?... Não fiques a pensar nisso, contudo...
Maga abriu definitivamente a porta e entrou em enorme sala-biblioteca decorada com a mesma febril profusão de alucinantes imagens, o livro Syma desdobrando-se em tomos «ad infinitum». A meio da peça, notável, além de tudo o mais, aparatoso sistema de lentes e esferas encimado por um globo liso e branco, meio encarapuçado, tal um olho de gigante semidesperto (inofensivo S-D-H).
Maga sentou-se numa poltrona. Riri foi buscar o Tomo MMMCMXCLV, que abriu na página própria e depois entregou à rapariga, retirando-se em seguida. Esta olhou as folhas desinteressada.
(Alice Sampaio, in "Aquário", Livraria Bertrand, 1963)
- Não há dúvida, no Livro de Syma, talvez num dos últimos tomos, talvez no primeiro, não me compete sabê-lo...
- Nunca te compete nada, «rapaz»! Não, não vem no livro de Syma; tal «trocadilho» deve ter passado à posteridade pela tradição oral...
Riri mostra-se extremamente divertido:
- ... Gostas de flanar ao capricho antigeométrico da natureza. É isso.
- Enganas-te, Riri. Conto-te estas coisas para que possas tirar sábias conclusões, ultrapasses o teu metálico espírito. Aos poucos - quem sabe? - tornar-te-ás um robot humanóide tão cínico como Albert ou Henry... - Maga levou um dedo aos lábios: - ... Não, o que queremos é que tenhas senso de humor, espírito crítico, como qualquer pré-histórico bobo, sòmente isso. Nem de outro modo se explicaria a tua existência, a não ser que uma existência se justifique... Nunca se justifica, é evidente...
Riri curvou-se. Os traços brilhantes do seu esferóide rosto fizeram-se mais brilhantes, como que reveladores de contentamento «íntimo»:
- Sou o teu Escravo, Maga.
Maga dirigiu-se a uma porta doirada (estavam em moda as portas doiradas), parando antes de a abrir para dizer:
- É melhor, de facto, continuares a desempenhar o teu simplérrimo papel de eunuco-escravo, ou melhor, de caixa metalo-orgânica onde se guardam «virtudes», isto é, propriedades neutro-negativas. Quem nos diz a nós que um dia não necessitaremos dessa bagagem para sobreviver?... Não fiques a pensar nisso, contudo...
Maga abriu definitivamente a porta e entrou em enorme sala-biblioteca decorada com a mesma febril profusão de alucinantes imagens, o livro Syma desdobrando-se em tomos «ad infinitum». A meio da peça, notável, além de tudo o mais, aparatoso sistema de lentes e esferas encimado por um globo liso e branco, meio encarapuçado, tal um olho de gigante semidesperto (inofensivo S-D-H).
Maga sentou-se numa poltrona. Riri foi buscar o Tomo MMMCMXCLV, que abriu na página própria e depois entregou à rapariga, retirando-se em seguida. Esta olhou as folhas desinteressada.
(Alice Sampaio, in "Aquário", Livraria Bertrand, 1963)
2 :
Olá físicos, olá Aristarco.
Acabei de adicionar ao Bibliowiki precisamente este livro (aqui e aqui), e gostaria da vossa ajuda, se possível.
É que a informação que eu tinha dizia que se tratava de um livro de poesia, ao passo que no site da BN se afirma que é um romance (chamado O Aquário e não apenas Aquário. Ao procurar mais informação que solucionasse a inconsistência, dei com o vosso blogue e com o vosso excerto, que parece confirmar a BN, mas se quisessem dar-me mais informações, eu agradecia.
Para tal, podem fazê-lo no próprio Bibliowiki. A edição das páginas propriamente ditas está desabilitada para não-editores, mas depois de criar uma conta podem usar a página de discussão.
Obrigado
enviado por Jorge Candeias em julho 28, 2007 4:18 da tarde
saudações!
feliz em ver o texto de Alice Sampaio sendo lido por físicos...! Eu estou estudando esta obra e justamente a conjugação da linguagem poética e científica que há na narrativa.
Ficaria muitíssimo contente em trocar mais ideias sobre este trecho ou sobre o livro, ainda sobre ligações entre poesia e ciência. Se quiserem, me escrevam cxadagra@gmail.com
Para responder ao comentário anterior, o livro "O Aquário" é definido como romance logo na folha de rosto, apesar de se encaixar também como "prosa poética", está disponível no site em memória da autora como toda sua obra: . <3
abraços,
Graziela
enviado por Graziela C. Drago K. Zeligara em setembro 11, 2019 12:10 da manhã
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