Um "insight" de Pasteur, por Agostinho da Silva

"O interesse pelas formas cristalográficas levara Pasteur ao conhecimento de uma nota de Mitscherlich sobre tartaratos e paratartaratos; o químico alemão estudara com particular atenção o tartarato e o paratartarato de soda e de amoníaco e verificara um fenómeno que desde então preocupava os sábios; os dois corpos apresentavam a mesma composição química, não havendo processo algum de análise que pudesse descobrir um elemento novo; examinados sob o ponto de vista cristalográfico, tinham as mesmas formas, exactamente com os mesmos ângulos; o peso específico era igual; notava-se em ambos a mesma dupla refracção e era o mesmo o ângulo entre os eixos ópticos; se os dissolviam na água era ainda a mesma a refracção; simplesmente, quando expostos à luz polarizada, isto é, à luz reflectida em certas condições, via-se que o tartarato a desviava, ao passo que o paratartarato se conservava neutro. Mitscherlich nem propunha solução para o problema; limitava-se a comunicar o fenómeno; os químicos que sabiam da nota debalde tentavam penetrar o mistério; ele mantinha-se irredutível, desafiando todos os esforços.

"A primeira atitude de Pasteur foi a do espanto; tratava-se certamente de um caso admirável na química: o comportamento diferente de duas substâncias idênticas ia contra todas as ideias que se tinham feito da segurança, da imutabilidade das leis químicas; se, na realidade, era verdadeira a observação de Mitscherlich, havia que rever todas as bases da ciência e assentar de novo o edifício que tanto tinha custado a levantar.

"(...) [Duplicação da experiência, pesquisa bibliográfica, formulação de hipótese, preparação experimental cuidadosa, refutação da hipótese, nova hipótese, mais experiências.]

"(...) restava verificá-las no paratartarato; o primeiro cristal estudado tinha, como esperava, a hemiedria direita; o segundo apresentava a hemiedria direita; o terceiro era de hemiedria esquerda; o véu rasgava-se, e tal era a intensidade da emoção que teve de suspender a experiência; as mãos tremiam-lhe, o coração batia-lhe, apressado e forte; dominando-se, continuou o exame dos cristais, temendo que tivesse havido algum engano na observação; mas, de todos eles, uns apresentavam a hemiedria direita, outros a hemiedria esquerda.

"(...) [Síntese.]

"Eis as bases em que ia assentar a última experiência; uma mistura, em partes iguais, da solução de cristais direitos e da solução de cristais esquerdos devia ser neutra à luz polarizada; colocada a solução no polarímetro, Pasteur aproximou-se ansioso, trémulo, batido de emoção; a luz não se desviava. Nem tornou a verificar o que vira; correu para fora do laboratório, encontrou no corredor um amigo que avançava pacificamente e quase o fez rolar com o salto e o abraço que lhe deu; e, tomando-lhe o braço, arrastou-o para o jardim do Luxemburgo onde lhe expôs, entusiástico, fremente, o que acabava de descobrir."

(in "A Vida de Pasteur", Agostinho da Silva, Ulmeiro)